Trecho O Jogo da amarelinha. Julio Cortázar
Cada vez mais reforço a ideia que qualquer tipo de arte é fundamental para se compreender o mundo. Quando li este capítulo em O Jogo da amarelinha de Julio Cortázar tive o prazer de encontrar um tesouro, inclusive, por mostrar que para reviver o passado, a arte é fundamental.
O passado já se foi, mas podemos revivê-lo através
da nossa imaginação, que é alimentada por meio de um poema, conto, quadro, uma brincadeira infantil, como brincar com a chama de uma vela, ou o lúdico de um jogo de um jogo antigo.
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Morelliana.
Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques
e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um
atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa
e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo
movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda,
abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar.
Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto
de todos nós (pensei nós e pensei bem, ou senti bem) durante milhares de anos,
durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. Imaginei outros
gestos, o gesto das mulheres levantando a ponta da saia, o gesto dos homens
procurando o punho da espada. Como as palavras perdidas da infância, escutadas
pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. Em minha casa já ninguém
diz “a cômoda de cânfora”, já ninguém fala das “trebes” - as trébedes. Como as
músicas do momento, as valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos
avós.
Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses
utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e
cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as
obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos
sonhos, na poesia, no jogo - acender uma vela, andar com ela pelo corredor -,
aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se
somos.
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